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Jorge Pedrosa

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sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Gay, nem que seja à força!

O jovem Abraham Lincoln dividiu a cama com um amigo durante quatro anos. Esse é um fato admitido pelas mais conservadoras biografias do presidente que conduziu os Estados Unidos durante a Guerra de Secessão. A interpretação que se dá ao fato é que pode mudar: convencionalmente se diria que essa prática era comum entre americanos pobres no século XIX. O psicólogo C.A. Tripp, porém, levantou uma hipótese diferente: num livro recém-lançado nos Estados Unidos, The Intimate World of Abraham Lincoln (O Mundo Íntimo de Abraham Lincoln), ele afirma que o presidente era homossexual. Atualmente, essa é uma tendência comum entre historiadores e pesquisadores ligados ao movimento gay, como é o caso de Tripp: todos buscam indícios de que grandes figuras da história, da ciência ou das artes tenham se desviado da via heterossexual. É o que se chama em inglês de outing – que se traduz como "tirar do armário". De William Shakespeare a Adolf Hitler, muitos armários célebres já foram sacudidos. Algumas dessas investigações se apóiam em evidências sólidas. Outras – e esse parece ser o caso de Lincoln – são apenas especulativas, e às vezes desfiguram ou exageram os fatos para atender a uma agenda política.
Pesquisas sobre a sexualidade das grandes figuras históricas, além de satisfazer uma curiosidade inata sobre sua intimidade, podem ser relevantes e iluminadoras. Elas permitem uma compreensão mais profunda – e até se poderia dizer mais humana – desses personagens, de sua vida, de seu tempo e de suas motivações. O filme Alexandre, de Oliver Stone, causou certa polêmica por mostrar as relações homossexuais do guerreiro macedônio. Em sua época, porém, esse era um comportamento tolerado e aceitável. Na Grécia daquele período, o relacionamento entre um homem mais velho e um jovem podia ter até um caráter pedagógico. O mesmo não se pode dizer da Inglaterra vitoriana, que condenou o escritor irlandês Oscar Wilde à prisão pelo "crime" de ser gay. No campo estético, a sexualidade pode iluminar aspectos ambíguos da obra de um artista. Uma leitura "heterossexual" da obra de Shakespeare perderia o sentido de seus sonetos. Em seu conjunto, esses 154 poemas contam a história de um triângulo amoroso bissexual, envolvendo o poeta, seu jovem amante e uma misteriosa "Dama Negra" – muitos supõem que o amante seja o conde de Southampton, protetor de Shakespeare. O renascentista Michelangelo também escreveu sonetos de conteúdo homoerótico, e é impossível entender a sensualidade de suas obras sem levar em conta esse aspecto de sua personalidade. O mesmo vale para o pintor e inventor Leonardo da Vinci. Hoje, restam poucas dúvidas de que ele foi gay – sofreu até um processo por sodomia.
Para o movimento gay, a descoberta da homossexualidade de um grande artista ou de um herói nacional é mais que uma questão acadêmica e adquire um caráter simbólico. "A homossexualidade sempre foi escondida, e é natural que esses fatos hoje sejam revelados. Nós, gays, temos pleno direito de levantar hipóteses, e até de cometer alguns equívocos", diz o escritor João Silvério Trevisan, autor de Devassos no Paraíso, ensaio histórico sobre os homossexuais no Brasil. O problema é quando um pesquisador acadêmico compromete sua seriedade com arroubos militantes, só para colocar a bandeira do arco-íris na mão de uma figura heróica. Foi o caso de Tripp, que já não pode responder por seus equívocos: morreu em 2003, antes de concluir a revisão de seu livro. A obra que pretende tirar Lincoln do armário tem muita especulação disfarçada sob um duvidoso verniz científico. O autor afirma, por exemplo, que Lincoln alcançou a puberdade aos 9 anos, apenas para invocar as teorias do polêmico sexólogo Alfred Kinsey – com quem Tripp trabalhou –, segundo as quais meninos que amadurecem prematuramente tendem ao comportamento homossexual. No posfácio do livro, o historiador Michael Burlingame, outro pesquisador da vida íntima do presidente americano, contesta as certezas de Tripp: "É possível, mas altamente improvável, que Abraham Lincoln fosse predominantemente homossexual".
Nos casos extremos de confusão entre pesquisa histórica e militância, os acadêmicos gays decidem escolher seus heróis – e recusar as más companhias. No Brasil, o mais espalhafatoso arrombador de armários é o antropólogo Luiz Mott, professor aposentado da Universidade Federal da Bahia e fundador de um grupo gay naquele estado. Em 1995, ele causou alvoroço ao aproveitar as comemorações dos 300 anos de Zumbi dos Palmares para afirmar que o herói negro era gay. Foi o início de uma polêmica bizantina: considerando que até mesmo a existência de um único líder chamado Zumbi já foi questionada, a discussão versou sobre a sexualidade hipotética de um personagem hipotético. O movimento gay quer encampar um herói negro, mas se sente incomodado quando surgem ilações sobre a homossexualidade do ditador nazista Adolf Hitler. Recentemente, o historiador alemão Lothar Machtan dedicou um livro a esse tema, em que trouxe à tona até indícios de que o líder nazista tenha se prostituído na juventude. Mott se revolta: "Se nos empurrarem Hitler, então queremos Jesus Cristo do nosso lado", diz, como quem vigia o placar de um jogo invisível entre gays e heterossexuais. A pista que Mott levanta – o carinho especial de Jesus por seu apóstolo João – é ridícula. Ninguém sai ganhando com esse tipo de raciocínio. Muito menos a verdade histórica.
 
Artigo retirado da revista VEJA, Edição 1889 . 26 de janeiro de 2005

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